A dispersão de espécies invasoras redefine a biogeografia
Apesar das suspeitas de que a globalização da dispersão de espécies mediada pelo Homem poderá ter como consequência a eliminação das barreiras biogeográficas, até ao momento não existiam dados empíricos que permitissem suportar esta hipótese. Mas os resultados obtidos por uma equipa internacional que inclui César Capinha e Henrique Pereira, investigadores do CIBIO-InBIO, revelam que as barreiras biogeográficas que condicionam a dispersão dos organismos estão efectivamente a ser quebradas e que a homogeneização está de facto a ocorrer. Num estudo publicado hoje pela prestigiada revista Science, os investigadores detalham a recém-descoberta reorganização biogeográfica de 175 espécies de gastrópodes – uma classe de moluscos - invasores ao longo de 56 locais dispersos pelo mundo e demonstram que, apesar desta atenuação das barreiras, os factores climáticos continuam a limitar a capacidade das espécies colonizarem novas áreas.
Neste estudo inovador é realizada a primeira análise global da forma como as invasões biológicas estão a reorganizar os padrões biogeográficos que têm vindo a evoluir ao longo de milhões de anos, e são obtidas evidências de que se estão a processar importantes alterações ao nível da biodiversidade. O estudo sucede outros estudos recentes que até ao momento não permitiram identificar tendências significativas ao nível da perda de biodiversidade à escala local ao longo das últimas décadas. “Tendo isto em consideração, adoptámos uma perspectiva diferente. Não testámos se têm havido alterações da diversidade de espécies ao nível das comunidades ao longo do tempo. Aquilo que fizemos foi tentar perceber de que forma está a similaridade entre comunidades de espécies a sofrer alterações”, explica César Capinha, investigador do CIBIO-InBIO – Cátedra REFER-Biodiversidade, e primeiro autor do estudo.
Quando os primeiros exploradores se aventuraram em viagens à volta do mundo, verificaram que quanto mais distantes os locais que visitavam, mais diferentes eram as espécies e ecossistemas que visitavam. Isto acontece porque existem barreiras geográficas que se interpõem à dispersão das espécies. A perspectiva técnica através da qual se analisa este fenómeno consiste em comparar o número de espécies que existem simultaneamente em dois locais diferentes. O grau de similaridade diminui muito rapidamente à medida que a distância entre os dois locais aumenta.
O oceano é uma das principais barreiras à dispersão. Como tal, as espécies que ocupam o mesmo continente partilham uma história evolutiva comum. Mas as espécies que se encontram em continentes que não estiveram ligados no passado ou que não o estão no presente, seguiram percursos evolutivos diferentes e divergiram. As principais regiões biogeográficas do planeta correspondem em larga medida aos continentes.
As migrações do ser humano e o transporte de mercadorias ao longo dos últimos séculos levou, intencionalmente ou mais frequentemente de forma não intencional, à dispersão de espécies para novos locais. Tem-se vindo a supor que esta dispersão mediada por humanos tende a homogeneizar a biodiversidade e a alterar as regiões biogeográficas. Contudo, esta hipótese nunca tinha sido testada a uma escala global.
Uma equipa internacional de cinco investigadores de Portugal, Áustria e Alemanha testou a hipótese da homogeneização através da análise de 175 espécies de gastrópodes invasores (caracóis) ao longo de 56 países e sub-regiões. Os investigadores estabeleceram a listagem das espécies invasoras que ocorrem em cada um dos locais, de forma a obter a distribuição global actual destas mesmas espécies, isto é, de modo a conhecer a distribuição dos caracóis após a sua dispersão por acção humana. De seguida, os investigadores foram determinar quais os locais onde estas espécies se encontravam antes desta dispersão mediada. Para cada espécie de caracol, foi definida a lista de locais onde esta é nativa. E os resultados obtidos são claros: tal como seria de prever, antes da dispersão mediada por humanos, era possível encontrar comunidades semelhantes em cada uma das principais regiões biogeográficas. Mas após a intervenção humana, as comunidades de espécies invasoras apresentam um padrão de distribuição completamente diferente, estando organizadas em duas grandes regiões biogeográficas: trópicos e áreas temperadas. As comunidades de espécies em áreas temperadas são mais semelhantes a outras comunidades noutras áreas temperadas, independentemente do continente em que se encontram. E o mesmo se verifica para as comunidades tropicais. Antes da ocorrência da dispersão mediada por humanos a mesma espécie não ocorria em comunidades separadas por mais de 11 000 km, e só um número muito limitado de espécies ocorria simultaneamente em comunidades separadas por mais de 6 500 km. Actualmente, mesmo regiões que distam entre si cerca de 20 000 km podem partilhar um grande número de espécies.
Os investigadores estudaram os factores que permitem explicar a similaridade entre comunidades de gastrópodes invasores. “No passado, a distância geográfica era o principal factor que permitia explicar a similaridade. Agora, esse ónus recai sobre o clima, que actua em conjunto não só com a distância, mas também com a intensidade do comércio entre os países”, afirma César Capinha. Neste caso, é especialmente relevante o comércio de bens que funcionam como vectores para os gastrópodes, como por exemplo telhas, plantas vivas, vegetais e frutos. Isto significa que, para climas idênticos, quanto mais intenso for o comércio entre dois países, mais semelhantes se tornam as comunidades de espécies em ambos.
Este estudo demonstra que a homogeneização está a acontecer, mas condicionada pelo clima. As barreiras geográficas à dispersão anularam-se, mas o clima ainda limita a capacidade das espécies colonizarem novas áreas. Isto sugere que as comunidades se vão tornar cada vez mais semelhantes a quaisquer outras comunidades que se inscrevam em quaisquer pontos do globo com climas idênticos. Os autores advertem para o facto desta expansão de espécies invasoras exercer uma pressão sobre as espécies nativas, tal como se torna facilmente perceptível se atendermos a que, nos últimos 500 anos, as invasões biológicas têm sido responsáveis por mais episódios de extinção de espécies do que qualquer outro factor.
Artigo original
César Capinha, Franz Essl, Hanno Seebens, Dietmar Moser, Henrique Miguel Pereira (2015) The dispersal of alien species redefines biogeography in the Anthropocene. Science, 12. DOI: 10.1126/science.aaa8913.
Imagem
O caracol branco Theba pisana é uma espécie originária da Europa que está agora distribuída mundialmente ao longo das regiões temperadas. Esta espécie prospera agora em locais como a Califórnia, África do Sul, sul da Argentina e sudeste da Austrália. Créditos da imagem: César Capinha