“Born to be wild”: novo estudo mostra como os coelhos domésticos sobrevivem no meio selvagem
Como é que os coelhos passam de animais de estimação dóceis para terríveis invasores? Os coelhos colonizaram territórios em todo o mundo, muitas vezes com um impacto económico e ecológico avassaladores. Num novo estudo publicado na revista Nature Ecology and Evolution, um consórcio internacional liderado por cientistas do BIOPOLIS-CIBIO (Portugal) e da Universidade de Uppsala (Suécia) sequenciou os genomas de quase 300 coelhos em três continentes descobriram que este sucesso depende da existência de uma componente genética selvagem.
A domesticação dos animais tem uma longa história. Qualquer animal de estimação - gatinho felpudo, cão leal ou peixe colorido - é apenas parte da incrível variedade de formas domésticas. "Alguns animais domésticos mudaram tanto desde os seus antepassados selvagens, que é difícil adivinhar um parentesco, como os chihuahuas que descendem de lobos”, explica Pedro Andrade, investigador do BIOPOLIS-CIBIO. "Estas mudanças são por vezes tão drásticas, que se colocarmos um animal doméstico de volta na natureza, será muito difícil para este sobreviver”.
Mas por vezes, estes animais domésticos superam esse desafio. Quando o fazem, chamamos-lhes ferais, populações de uma espécie outrora doméstica que se readaptou com sucesso ao meio selvagem. Os coelhos são um exemplo clássico. Como resultado de libertações recorrentes, os coelhos colonizaram todo o mundo, mas uma dúvida central permanece: como é possível um animal doméstico, resultado de milhares de anos de adaptação ao cativeiro, sobreviver e prosperar quando é devolvido à natureza?
"Num estudo anterior da nossa equipa sobre a colonização da Austrália pelos coelhos, descobrimos que coelhos domésticos foram libertados ao longo de várias décadas, até que uma única introdução de coelhos selvagens de Inglaterra, pelo colono Thomas Austin, desencadeou o crescimento explosivo da população de coelhos que provocou aquela que é considerada um dos maiores desastres ambientais da história”, afirma Joel Alves, investigador do BIOPOLIS-CIBIO e da Universidade de Oxford.
Será esta a razão pela qual os coelhos estabelecem frequentemente populações ferais? Para responder a isto, a equipa internacional de investigadores sequenciou os genomas de quase 300 coelhos, incluindo seis populações ferais de três continentes – Europa, América do Sul e Oceânia – assim como coelhos domésticos e selvagens da área de distribuição original no sudoeste da Europa. Munidos do maior conjunto de dados genéticos de coelhos alguma vez produzido, os investigadores lançaram-se a perceber o que torna estes coelhos introduzidos únicos.
"Os coelhos domésticos são tão comuns, que a nossa expectativa inicial era que estas populações ferais fossem compostas por coelhos domésticos que se readaptaram ao meio selvagem, mas as nossas descobertas apontam para um cenário mais complexo”, explica Miguel Carneiro, autor sénior do estudo. Segundo ele, "apesar de termos analisado seis colonizações independentes, todos estes coelhos ferais partilham uma origem mista, doméstica e selvagem”.
A equipa descobriu que, durante a readaptação ao meio selvagem, variantes genéticas associadas à domesticação são muitas vezes eliminadas porque estas características acabam por ser deletérias no meio selvagem tornando os animais mais vulneráveis à predação. Este padrão é mais acentuado dependendo do quão extrema a característica se tornou durante a domesticação. "Nestas populações não vemos coelhos totalmente brancos ou pretos, apesar destas cores serem muito comuns nos coelhos domésticos, porque são cores que saltam à vista aos predadores. No entanto, é frequente encontrarmos coelhos com a mutação genética que causa uma "diluição” da cor do pelo, uma variante doméstica, mas que tem um efeito mínimo na camuflagem.” acrescenta Leif Andersson, professor na Universidade de Uppsala, que continua "Isto é um exemplo concreto de seleção natural em ação”.
Esta eliminação de características domésticas não se restringe às cores do pelo. A equipa encontrou evidências de seleção natural em genes ligados ao comportamento e ao desenvolvimento do sistema nervoso. "A docilidade é crucial para os animais domésticos viverem perto das pessoas, mas não ajudará um coelho que volte ao meio selvagem a sobreviver, por isso a seleção natural remove as variantes genéticas ligadas a estes comportamentos” explica Pedro Andrade.
O estudo tem implicações para compreender a evolução, e será seguido de perto por legisladores e técnicos na linha da frente da conservação da natureza. Os coelhos ferais tornam-se frequentemente pragas, causando centenas de milhões de dólares em danos, situação semelhantes à de outros animais que passaram de domésticos a selvagens, como porcos ferais ou gatos ferais. "A melhor estratégia para mitigar os impactos das espécies invasoras é impedir que sejam introduzidas logo de início, por isso esperamos que o nosso estudo forneça evidências importantes para ajudar a avaliar e identificar futuros riscos de invasão” conclui Miguel Carneiro.
Artigo:
Andrade, P. et al. (2024). Selection against domestication alleles in introduced rabbit populations. Nature Ecology and Evolution.
DOI: s41559-024-02443-3
Imagens:
Imagem 1. Grupo de coelhos ferais a beber num poço de água na Austrália, em 1938. Crédito: Autor desconhecido (National Archives of Australia) | Créditos: Fotografia em domínio público
Imagem 2. Grupo de coelhos ferais na Austrália | Créditos: Liz Poon (CSIRO); Disponível sob licença CC BY 3.0.
Imagem 3. Coelho europeu, indivíduo selvagem fotografado na área de distribuição nativa na Península Ibérica | Créditos: Alberto Redondo
Imagem 4. Coelho feral fotografado na Argentina, numa das populações estudadas no novo artigo | Créditos: Never Bonino
Imagem 5. Coelhos domésticos, evidenciando alterações morfológicas e na cor resultantes da domesticação | Créditos: Pedro Andrade